10/03/2011. 21:00. Rio Comprido, Rio de Janeiro. Uma noite chuvosa e triste. Ponto final do ônibus linha 711 Rio Comprido, o qual, apesar das mais diversas orientações negativas, resolvi tomar para o retorno de meu lar.
Confesso não esperar muito da viagem, diante dos inúmeros percalços sofridos por amigos e parentes, naquela malfadada linha de ônibus. Minhas espectativas, porém, estavam para ser em muito superadas...
Embarquei no coletivo portando um copo de sopa de ervilha, adquirido em uma luxuosa e notadamente higiênica "barraca de caldos", nas mediações do ponto de ônibus. No caminho até meu assento, pude notar a beleza das pessoas que utilizavam aquele meio de transporte. Leides, Lordes, príncipes e princesas aguardavam pacientemente o regresso ao lar, depois de um cansativo dia de trabalho. Uma distinta senhora me chamou a atenção: Uma jovem mulata, de lábios grossos, portando belas vestes e uma voz soprana travava um digno colóquio pelo celular, utilizando-se dos mais ricos vocábulos de nossa língua. Pelo que pude entender, estaria aviltada e exasperada, pois "A mulherzinha daquela loja havia perguntado se ela trabalhava em algum salão de cabeleireiro, porquanto ela era supervisora de segurança". (Acredito, ainda, que o nome da lojista pudesse ser PIRANHA, uma vez que a pomposa dama não abria mão de repetir tal alcunha.)
Já nos primeiros minutos de viagem, devo destacar, senti-me enfadado. Diante da inequívoca possibilidade de assalto, havia escondido meu aparelho celular dentro da bolsa e, assim, não poderia escutar minha coletânia de músicas, que variavam de "Eu amo você", de Tim Maia, até "The mourning after" do Kamelot, todas em formato MP3, que cuidadosamente havia separado. Entretanto, para meu deleite, um singelo rapaz, com vestimentas típicas de bailes de gala, embarcou naquele transporte público, e, por sorte, acomodou-se no assento posterior ao meu. E não mediu esforços para iniciar seu repertório de cânticos urbanos, servindo-se de seu dom divino e timbre tenor, cantando sucessos da música popular brasileira, como "BONDE DO TURANO, É NOIX", "CAVERÃO NÃO ME ASSUSTA" e "AS NOVINHA VÃO PRO BAILE". Ah, belos tempos dos festivais de música popular brasileira! Garanto que este rapaz, ganharia de longe Tony Tornado, com sua "BR-3". E Elis Regina? Gilberto Gil? Caetano Veloso? Até mesmo eles se renderiam ao talento do jovem cantor.
À esta altura, embalados pelo som dos DJ`s informais, a viagem alcançava a localidade conhecida como "Jacarezinho". Repentinamente os estudantes interromperam o show, sussurando um para o outro: "-Entoca aí, entoca aí". Pude perceber a aflição dos jovens:Um grupo de notórios bacharéis, talvez descendentes da elite de 1930 liderada por Epitácio Pessoa e Rui Barbosa, parecendo estar voltando de uma partida de futebol (dado o inincômodo aroma de suor exalado e chuteiras amarradas a seus ombros) promoviam uma calorosa discussão com o motorista-cobrador daquele micro ônibus, pois um deles insistia em "pular a roleta", ao impedimento do obreiro, que ponderava o prejuízo a ser despendido à suas expensas, já em muito precárias.
Ora! Verdadeiro vexame foi consternado pelo bacharel, que amargou angústia e aflição, às vistas dos demais passageiros, que assistiam aquela injustificada negativa de acesso gratuito ao coletivo. Não perdeu tempo. Tão logo pagou sua passagem (à contragosto, ressalte-se, já que bradava seu direito ao acesso ádveno-gratuito), revestiu-se dos poderes da toga e, juntamente com o colegiado de seus amigos, pôs em pauta seu pedido de indenização por danos morais, ao passo que, em suas palavras: "Se fosse us crackudo, duvido que ele ia bronquiar (negar). Os crackudo dão logo facada no pescoço..." - sustentou.
Ao fim da sessão solene, por maioria de votos, foi julgada procedente a pretensão indenizatória, ficando acertado que o "vidro" (espelho retrovisor do ônibus, localizado na porta traseira), seria suficiente para ressarcir os danos imateriais sofridos, pois ipisis litteris: "deveria custas uns 200 conto, e com certeza ia sair do bolso daquele filhadaputa".
Pois que, enfim, a viagem chegava a seu fim. Bairro de Rocha Miranda. Alguns pontos depois da conhecida praça do bairro, o bacharel - magistrado levantou e puxou a corda, sinalizando ao motorista sua intenção de desembarque. Um dos membros do colegiado perguntou, em alto e bom som: "Quoé, Tininho! Num vai levá o vridro (vidro) não?". Senti-me inclinado a atuar como amicus curiae e esclarecer que o "vridro", na verdade, era um retrovisor, porém, fui impedido pelo repentino ato de auto-executoriedade da decisão da corte, que àquela altura já era soberanamente imutável e transitada em julgado: O Bacharel dependurava-se brutalmente no espelho retrovisor, com a intenção de arrestar o bem para satisfazer a execução.
Não contava, no entanto, com a obstinação do objeto inanimado, que resistiu piamente à execução, sem saber que afrontava todos os princípios da boa fé processual. E pior: Conseguiu fazer com que o executor perdesse o equilíbrio e despencasse da escada de desembarque, vindo ao chão, aplaudido pelas risadas de seus próprios companheiros, causando-lhe ira, dor e mais angústia.
Diante daquele fato novo, ignorando qualquer juízo de cognição sumária, o já nomeado ministrobuscou a satisfação alternativa do dano, esmurrando os vidros laterais do ônibus, já em movimento.Os vidros, encorajados pela resistência do bravo espelho retrovisor, não estilhaçaram, sobrando para aquele cidadão de bem o papel destinado aos arlequins, fechando com golden key aquele (agora cômico) episódio.
Ainda anestesiado pela rápida tramitação processual, lembrando-me que existia um processo de um cliente ainda para ser julgado, desde 2008, na Justiça do Trabalho, levantei-me juntamente com os demais passageiros da parte de trás do coletivo, uma vez que o colegiado (agora exercendo juízo de retratação) alertavam aos passageiros sobre a possibilidade do "Ministro Tininho" estourar o vidro traseiro, com pedras, ou qualquer outro projétil. Felizmente não ocorreu.
Só então percebi que meu ponto havia passado. Desci num local totalmente desconhecido e, aparentemente longe da minha residência. Perguntando a um transeunte onde estaria, disse-me "Perto de Honório Gurgel" e, ainda, que demoraria uns 10 a 15 minutos para chegar na minha rua.Ora, um pequeno preço a ser pago, diante do banquete de cultura proporcionado pela viagem no ônibus 711.